Performance é o meio de sobrevivência millennial
FERNANDA PERRIN
FOLHAPRESS - Jia Tolentino é apenas três anos mais velha do que eu. Quando adolescentes, vivemos a era de ouro dos blogs. Criamos um perfil no Facebook mais ou menos na mesma época, há mais de dez anos, e vimos, desde então, uma multiplicação das nossas identidades virtuais a cada nova rede social que surgia.
Compartilhamos todo um repertório cultural alimentado pela internet, não obstante a enorme distância que nos separa: ela, uma canadense, filha de filipinos criada no Texas, e eu, uma brasileira branca que morou em São Paulo quase a vida toda.
Hoje, ambas vivemos, de certa forma, como produtoras de conteúdo distribuído online (Tolentino trabalha como jornalista na revista The New Yorker). É pela internet que nos sustentamos, consumimos, nos relacionamos, educamos. Nela, somos.
O que nos une, fundamentalmente, é termos crescido junto com esse novo universo, nos descobrindo enquanto a internet também se descobria -aquele mundo de salas de bate papo e geocities parece tão ingênuo quanto eu era aos 12 anos, quando comparado à intrincada rede de delírio e egocentrismo atual.
Essa experiência geracional sem precedentes é o denominador comum dos millennials, como são chamados os (já nem tão) jovens nascidos entre o final dos anos 1980 e o começo dos 1990.
Em "Falso Espelho", o que Jia faz é investigar a imagem refletida nessas telas. Nesse processo de olhar para si -não fica mais millennial que isso-, desmistifica e problematiza traços comuns a toda essa geração.
São nove ensaios que tocam temas diversos, de literatura a golpes e violência sexual, passando até pela experiência da autora como participante de um reality show juvenil.
Subjacente a esse cardápio variado está a revolução tecnológica que avassalou nossas identidades, desejos e meios de sobrevivência.
Tudo recebe um verniz performático, a aparência sobrepondo-se ao ato, o discurso, à prática.
Claro que a performance não foi inventada pelos millennials, mas se antes os momentos de representação tinham começo e fim -durante uma entrevista de trabalho, em um jantar com amigos-, agora, com a internet, há um público em tempo integral. O show nunca acaba.
"A loucura cotidiana perpetuada pela internet é a loucura dessa arquitetura que instala a identidade pessoal no centro do universo. É como se estivéssemos em um posto de observação olhando para o mundo inteiro com um binóculo que faz tudo se parecer com nosso próprio reflexo", escreve Jia.
À primeira vista inofensivas, as grandes empresas tecnológicas instalaram-se em nosso organismo como parasitas das tendências narcísicas que nos são naturais, sugando personalidades e desejos em dados para venda.
As implicações políticas dessas transformações são bem trabalhadas pela autora, que escreveu os ensaios durante a campanha que culminou na eleição de Donald Trump nos EUA, mas não são análises lá muito inovadoras.
Mais interessantes (e ácidos) são os comentários sobre a engrenagem econômica que move a vida millennial.
A disseminação do trabalho freelance e as mudanças frequentes de emprego que marcam nossa geração, longe de ser consequências da "flexibilidade" e "busca por propósito" dos jovens, como repetem em mantra os RHs, são a face de um mercado de trabalho cada vez mais instável e cruel.
Nesse ambiente de incertezas, os millennials adotaram a única estratégia que conhecem para sobreviver em busca de alguma estabilidade: a performance, travestida de "marca pessoal".
"Nosso potencial social se une à nossa capacidade de chamar a atenção do público, o que, por sua vez, se torna indissociável da sobrevivência econômica", escreve Jia.
Essa dinâmica tem efeitos especialmente perversos sobre as mulheres. A "habilidade de empacotar e transmitir uma imagem", como coloca a autora, assim como a autovigilância, são frequentes entre nós, dado que o valor social do feminino historicamente girou em torno da aparência.
Nesse sentido, as redes sociais aprofundam e, ao mesmo tempo, dão uma escala inédita a esse ativo.
A mulher millennial ideal é aquela que está em processo constante de "otimização", como se fosse para si mesma um projeto em aperfeiçoamento. Entre rituais de "skin care" e "treinos" (para quê?) na academia, circulamos nessa zona algo ridícula -mas muito rentável- onde autoconhecimento, autocuidado, autoajuda e baboseiras místicas se encontram.
Estamos, enfim, presas no gerúndio de nos tornarmos as mulheres que queremos ser (e consumindo muito para isso). Um pesadelo beauvoiriano.
Na outra ponta, não vemos a mesma "otimização" dos nossos salários, direitos reprodutivos e representação política, pontua a autora.
A vertente liberal do feminismo contemporâneo -inseparável do mundo das redes sociais- reforça esse empoderamento vazio. Ao confundir sucesso individual com avanço coletivo, esse tipo de feminismo deixa intacta as estruturas de poder que reproduzem a desigualdade de gênero.
"Uma política construída em torno de ganhar e gastar dinheiro é mais sexy do que uma política construída em torno de política", diz Jia.
Não só nós, como indivíduos, estamos performando -empresas também. Enquanto Ubers e Amazons prometem descomplicação e "disrupção", o que vemos é um modelo de negócio que "contorna as regulamentações, corta os direitos, evita as responsabilidades e escoa o máximo de dinheiro possível das pessoas que realizam o trabalho físico", escreve a autora.
O maior trunfo de "Falso Espelho" é o deslocamento que Jia promove do individual performático para o coletivo político. Na forma de ensaios na primeira pessoa, muito calcados nas experiências pessoais da autora, a obra não foge completamente à estética millennial, mas é bem-sucedida em subverter esse mecanismo para apontar as distorções que ele provoca. Agora, só nos falta uma saída.
FALSO ESPELHO
Avaliação Muito bom
Preço 82,90
Autor Jia Tolentino
Editora Todavia
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