Quem é o ator que fez novela no BR antes de 'Berlin Alexanderplatz'
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Inglês, alemão, creole. As três línguas são faladas pelo ator Welket Bungué, de 33 anos, ao longo das três horas de "Berlin Alexanderplatz", em cartaz no streaming agora. Na nova versão da trama, um clássico da literatura alemã, ele é um refugiado que encontra um destino trágico em meio à violência, o sexo e as luzes néon da madrugada berlinense.
É em português, no entanto, que Bungué conversa com esta repórter por telefone, numa brecha das filmagens de um longa que ele protagoniza e que roda agora na Bélgica. O ator, nascido na Guiné-Bissau, na costa oeste africana, cresceu em Portugal. Mais especificamente, em Beja, no sul do país, num internato, onde morou dos 11 aos 19 anos. "Só ia para casa nas férias, Páscoa, Natal."
Foi também em Portugal que Bungué descobriu e desenvolveu o gosto pela atuação, entre videocassetes alugados nos fins de semana –ele cita as performances de Will Smith em "Inimigo do Estado" e de Russel Crowe em "Gladiador" como algumas que mais o marcaram na época– e, mais tarde, a formação na Escola Superior de Teatro em Cinema, em Amadora, a 20 minutos de Lisboa.
Foi no Brasil, porém, que a carreira de Bungué ganhou tração. Por causa de um mestrado, o ator se mudou para o Rio de Janeiro em 2012, quando a cidade estava "no pico", diz. Conta que estava decepcionado com as oportunidades que vinham sendo oferecidas a ele depois de um papel importante na minissérie "Equador", adaptação do best-seller de Miguel Sousa Tavares, exibida quatro anos antes.
"Estava entre os que eram na época os atores mais respeitados da indústria portuguesa. E isso não me deu, a meu ver, o respaldo e a atenção da mídia que teria em outro país", diz. "Saí de Portugal por ser muitas vezes obrigado a aceitar papéis residuais nas histórias. Estava sendo subaproveitado enquanto artista, escalonado para fazer personagens que na trama não tinham grande impacto."
O caminho que Bungué encontrou foi, então, virar um ator global. Ou melhor –"globalizado", ele corrige, rindo. "Ator global, você sabe, é da Globo."
Bungué hoje fala seis línguas. Aprendeu alemão em menos de seis meses para "Berlin Alexanderplatz". Para o longa de agora, estuda uólofe, idioma falado no Senegal e em outros países da costa ocidental da África.
A aposta numa carreira ainda mais internacional foi reforçada no ano passado, quando ele enfim se mudou para Berlim, uma das cenas artísticas mais efervescentes da Europa.
O ator, que passou os primeiros meses de pandemia no Rio, diz que chegou a pensar em fixar raízes por aqui, mas desistiu depois da eleição de Bolsonaro. "E isso se revelou sintomático, porque na comunidade artística, todos os que puderam estão agora vivendo em Lisboa ou em Berlim." Ele e a companheira ainda mantêm um apartamento no bairro de Santa Teresa, porém.
Questionado se conhece outros atores que, como ele, não temem a barreira do território ou da língua, Bungué responde que isso não é exatamente novo. O que ele diz observar agora é uma autonomia maior dos descendentes da diáspora africana para atuar no mercado global. "Agora temos acesso a uma maior diversidade de atores e atrizes, com perfis muito diferentes daqueles que a própria Globo vinha celebrando desde os anos 1980."
Bungué atuou, aliás, numa novela da emissora, "Novo Mundo". Também participou de uma série de filmes nacionais. Viveu um escravo, fiel escudeiro de Tiradentes, em "Joaquim", de Marcelo Gomes. Um operário imigrante em "Corpo Elétrico", de Marcelo Caetano. E um contra-almirante inglês no ainda inédito "Pedro", retrato intimista de dom Pedro 1º de Laís Bodanzky.
Uma das parcerias mais longevas desde que o ator veio para o Brasil é menos conhecida do público, no entanto. É com o cineasta capixaba Bernard Lessa, que ele conheceu ainda em terras lusas. Bungué atuou na maioria dos filmes que Lessa dirigiu. No último, "A Matéria Noturna", ainda em processo de finalização, vive um romance com uma motorista de aplicativo.
Lessa diz que, das qualidades de Bungué, uma das mais marcantes é sua presença em cena. "Ele pode não estar fazendo nada, mas você percebe que há uma densidade por trás. A câmera adora isso." Além disso, acrescenta, ao mesmo tempo em que o ator não perde a câmera de vista, ele se deixa levar pelos personagens que interpreta, e tem uma grande capacidade de improviso.
O último comentário é ecoado por outros cineastas que trabalharam com o ator. Marcelo Gomes lembra como ele trouxe textos em creole e coreografias aos ensaios de "Joaquim". Laís Bodanzky conta que Bungué e Isabél Zuaa, outra atriz portuguesa, estavam prestes a rodar suas cenas finais em "Pedro" quando sugeriram à diretora um novo desfecho para os personagens.
"Ainda bem que eles apertaram o botão vermelho e disseram 'essa cena está estranha'", diz Bodanzky. "Do ponto de vista narrativo, e principalmente do respeito às personagens pretas e dos seus destinos nos filmes."
"Achávamos que o final que o roteiro propunha não era o mais justo para a trajetória dos dois personagens", afirma Bungué sobre o episódio. "Ao mesmo tempo, estamos contribuindo para que esse cinema que é feito com um enquadramento histórico não reproduza a imagem de descrédito e subalternidade de determinados perfis. Nós ficcionalizamos histórias, e essa ficção deve contribuir para elevar a autoestima e, sobretudo, trazer um imaginário mais livre entre interpretações estigmatizados. É nisso que acredito."
É uma busca que, quanto mais se conversa com Bungué, mais soa crucial para ele. Ele diz que parte do motivo pelo qual decidiu se mudar para o Brasil foi a percepção de que só assim entraria em contato com suas origens africanas -ele só voltou à Guiné-Bissau, da onde saiu aos três anos, em 2019. "Uma mãe de santo me disse que eu voltaria", conta, lembrando a passagem pela Bahia durante as gravações de "Equador".
A questão ainda permeia suas incursões pela direção –ele já dirigiu mais de 15 curtas até agora. Seis deles serão exibidos numa mostra dedicada a Bungué no festival Cine Esquema Novo, que acontece entre 10 e 15 de abril de forma virtual e gratuita.
"Como ator, defendo o personagem. Mas como diretor, no limite, terei a oportunidade e a responsabilidade de expor as motivações estéticas, políticas e pessoais que estão na base daquele trabalho", diz. Mas esclarece que não tem planos de abandonar a interpretação. "Ser ator é o meu sonho concretizado. É aí que me vejo me expressando."
BERLIN ALEXANDERPLATZ
Onde: Disponível no Now e aluguel no Looke, Apple TV, Google Play e Microsoft
Classificação: 16 anos
Elenco: Welket Bungué, Albrecht Schuch, Jella Haase
Produção: Alemanha, 2020
Direção: Burhan Qurbani14º CINE ESQUEMA NOVO - MOSTRA ARTISTA CONVIDADO WELKET BUNGUÉ
Quando: 10 a 15 de abril
Preço: Grátis
Link: https://ift.tt/2Ph8K8v
Programação: 'Mudança', 'Treino Periférico - É Bom Te Conhecer', 'Buôn', 'Cacheu Cuntun' e 'Bustagate'
Debate com Welket Bungué 11 de abril, no YouTube do festival
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