Prêmio Nobel da Paz é alvo de críticas após vexames em série
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em 10 de dezembro de 2019, o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed Ali, subiu ao palco do salão nobre da prefeitura de Oslo, na Noruega, para receber o prêmio mais cobiçado do planeta (com a possível exceção do Oscar).
"Recebo esse prêmio em nome dos africanos e cidadãos do mundo, para quem o sonho da paz tem frequentemente se tornado o pesadelo da guerra", discursou, ao agradecer o Nobel da Paz por seu papel no fim da guerra contra a Eritreia.
Menos de um ano depois, em novembro de 2020, Ali dava início a mais um pesadelo da guerra em seu país, ao ordenar um ataque a rebeldes da região de Tigré, no norte do país. O conflito, um dos maiores do continente, já provocou mais de 2 milhões de desabrigados e milhares de mortos.
Para o Comitê do Nobel da Paz, foi apenas mais um constrangimento em anos recentes.
Os organizadores do prêmio ainda lidavam com o movimento internacional de ativistas pedindo a cassação do prêmio dado à líder de Mianmar Aung San Suu Kyi, em 1991.
O motivo era seu silêncio quanto aos massacres praticados pelo governo que ela integrava contra a etnia rohingya,minoria muçulmana que vive no oeste do país. Presa desde um golpe militar ocorrido no início de fevereiro, Suu Kyi, na cadeia, talvez recupere parte do prestígio perdido.
A sequência de eventos gerou críticas pesadas aos critérios de seleção do Nobel, um prêmio que concede grande prestígio moral. "Para o comitê do Nobel, fica uma lição: quando estiver em dúvida, espere", escreveu o jornal britânico Financial Times, ao comentar o caso etíope.
Controvérsias não são estranhas para o Nobel da Paz, estabelecido em 1901 a partir do testamento do sueco Alfred Nobel. Mas os últimos anos não têm sido fáceis.
Em 2009, o Nobel já havia sido torpedeado por ter escolhido, em seu primeiro ano de mandato, e sem ter grandes realizações, o presidente dos EUA, Barack Obama.
"Olhando em retrospecto, está muito claro que o prêmio para Abiy Ahmed foi prematuro. Ele é um líder autocrático num país com múltiplos conflitos armados, era obviamente um prêmio de alto risco", diz Henrik Urdal, diretor do Instituto de Pesquisa da Paz de Oslo, que acompanha de perto o Nobel.
Foi então um erro? Não necessariamente, afirma Urdal. Ousar, afinal, é parte da proposta do Nobel. "A ideia por trás de prêmios como esses é dar um empurrãozinho para apoiar acontecimentos positivos, mas nesse caso isso não foi bem-sucedido, pelo menos até o momento", diz ele.
Um prêmio conservador, argumenta, concedido apenas a figuras menos influentes e menos controversas, poderia tirar parte do brilho do Nobel. "O prêmio se tornaria algo muito irrelevante", diz.
Autor de "Peace, The Say", um livro sobre a história do Nobel, o jornalista americano Jay Nordlinger afirma que muitas pessoas têm uma concepção errada sobre o prêmio.
"O prêmio é dado pelo trabalho feito no ano anterior. Não é pelo conjunto da obra do premiado", afirma.
Assim, o Nobel entendeu que o premiê etíope merecia ganhar pelo trabalho específico no acordo de paz com a Eritreia, embora Nordlinger reconheça que acabou se tornando algo embaraçoso.
"Não é sempre que você tem uma Madre Teresa de Calcutá", diz ele, referindo-se à religiosa que recebeu o prêmio em 1979 e depois foi canonizada. Em outras palavras, a imagem de que os vencedores são santos na Terra é falsa.
"Na maior parte do tempo, a paz é uma arena política. Muitas vezes, as pessoas que ganham estão envolvidas em governos, lidando com temas de guerra e paz", afirma.
Em décadas passadas, já houve arranhões à imagem do Nobel. O prêmio dado ao ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger em 1973, por seus esforços para encerrar a Guerra do Vietnã, é frequentemente citado como uma das piores escolhas já feitas.
Não apenas a guerra continuou por mais dois anos, mas Kissinger teve a reputação abalada pelo apoio a regimes repressivos.
Outro exemplo de prêmio controverso é o dado em 1994 ao líder palestino Yasser Arafat. Ex-líder de uma organização terrorista, ele foi agraciado pelos Acordos de Oslo, no ano anterior, com Israel.
O processo de escolha do Nobel é longo. Indicações têm de ser feitas até 31 de janeiro do ano do prêmio, e apenas categorias específicas de pessoas podem submetê-las: entre elas, membros de Parlamento nacionais e de governos, professores universitários de áreas de humanidades e vencedores de anos anteriores.
Em média, cerca de 300 indicações são feitas por ano, mas seus nomes só são divulgados 50 anos mais tarde. Depois de meses de reuniões, a lista é reduzida para cerca de 30, que passarão pela peneira final do Comitê do Nobel.
O órgão é composto por cinco pessoas eleitas pelo Parlamento da Noruega, em geral especialistas em temas internacionais. Os membros têm mandato de seis anos, com direito a reeleição. O anúncio ocorre no início de outubro, e as razões apontadas para a escolha em geral se resumem a um parágrafo, sem detalhes.
O mecanismo atribulado e os critérios de seleção têm críticos.
Um deles é o professor de Direito norueguês Fredrik Heffermehl, que tem o site The Nobel Peace Prize Watch.
Ele diz que o prêmio deveria ser dado a ativistas dedicados à paz internacional, e não para chefes de Estado.
Este era o propósito original do Nobel, afirma. "O objetivo era fomentar a cooperação internacional para um mundo sem armas. Mas o Nobel foi corrompido", diz.
A Folha entrou em contato com o Comitê do Nobel, mas não teve resposta.
Ao longo do tempo, o Nobel foi mudando seus critérios, de um prêmio focado no desarmamento para outro que leva em conta o ativismo em direitos humanos e, mais recentemente, temas sociais, como meio ambiente e educação.
Heffermehl torce o nariz para essas inovações, dando o exemplo do prêmio para a paquistanesa Malala Yousafzai, em 2014. "Ela poderia ter ganhado por se opor à militarização da região onde vivia, o Vale do Swat, mas ganhou por defender a educação feminina. Ninguém é contra educação, mas é algo muito distante do que Nobel tinha em mente."
No ano passado, o prêmio evitou a controvérsia com uma escolha aparentemente "segura", o Programa Nacional de Alimentação. Mas é difícil imaginar que a opção pelo primeiro-ministro etíope que pregava paz e fez a guerra tenha sido a última polêmica do Nobel da Paz.
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