Ocupação do Alemão ensina que força do Estado não depende da violência, diz pesquisador
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Dez anos depois da operação que prometeu pacificar o Complexo do Alemão, Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, analisa que a maior lição a se tirar dessa "grande ilusão" é que a força do Estado não depende necessariamente da violência.
"Quanto mais violência você usa, é porque menos poder você tem", ele diz, completando que a questão mais urgente para o Rio de Janeiro agora é resgatar o poder político das instituições e do governo, que é quase inexistente na visão dele.
Com o olhar de São Paulo, Paes Manso viajou ao Rio diversas vezes ao longo de um ano para "mostrar o tamanho do buraco" ao escrever o livro "República das Milícias: Dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro'' (Todavia, 2020). Em entrevista à Folha, ele aponta falhas e virtudes das UPPs, lembra as novas vozes que surgem das favelas e critica o modo como se enfrenta o crime hoje.
Folha - Dez anos depois, como você avalia a ocupação do Alemão?
Bruno Paes Manso - Foi uma grande ilusão. O Complexo do Alemão era visto como o grande muro a ser quebrado. Teve um papel simbólico aquele ingresso, porque pela primeira vez no Rio de Janeiro se falou não existia território impenetrável pelo Estado. Talvez as instituições no RJ nunca tenham estado tão simbolicamente fortalecidas como naquele momento.
Era um otimismo absurdo. O turista ia almoçar no Vidigal, naqueles restaurantes com várias estrelas pelo New York Times e depois ia tirar uma selfie na estátua do Michael Jackson no Santa Marta. Ia ter a Copa em 2014, as Olimpíadas em 2016, o petróleo estava com o preço alto, as UPPs aparentemente vinham funcionando, parecia que estava tudo dando certo. É a época, em 2009, daquela capa da Economist com o Corcovado decolando.
A ressaca foi pesada, porque as pessoas compraram essa ideia, inclusive eu. Alguns já apontavam, mas era difícil não comprar. Aquela cena simbólica da bandeira sendo hasteada no teleférico quando eles entram também viria a ser o símbolo da ilusão. O teleférico parou de funcionar, e uma dos policiais que hastearam a bandeira foi o [presidente da Portela] Falcon, que era ligado ao bicho e foi morto pelo Escritório do Crime em 2016.
Folha - E como estratégia de segurança, como você avalia a tática de ocupar?
Bruno Paes Manso - Havia aspectos interessantes nas UPPS, é inegável. Talvez a coisa mais importante é que foi justamente a época de menor violência policial. O aspecto positivo é que eles falavam: a gente não quer que exista nas favelas ostensividade de armas, assassinato e violência. Se ficar um traficante, vender drogas não é o pior dos mundos. Então quando as UPPs eram anunciadas, os traficantes saíam nas vésperas, e as UPPs entravam sem mortes, de maneira geral.
Aqui em São Paulo teve uma coisa parecida que eram as chamadas "operação saturação". Quando tinha violência numa favela, a polícia ficava três meses nesses lugares, então os traficantes começaram a falar entre eles: olha, não vamos matar, porque quando mata tem a ocupação, então vamos ganhar dinheiro mas sem guerra.
O maior problema do tráfico são as mortes, o domínio territorial, então a ideia era interessante, mas havia dois problemas muito sérios: primeiro era muito custoso e dependia de muito investimento em polícia. Você acabava tirando a atenção de outros bairros, onde esses grupos foram se fortalecendo. Em segundo lugar, você tinha uma polícia viciada há 30 anos, que não tinha sido reformada, que também descobriu formas de ganhar dinheiro e de aproveitar as UPPs, fazer extorsões. A violência e a truculência começaram a acontecer, e o caso do Amarildo em 2013 na Rocinha foi o escândalo definitivo.
Folha - Foi uma estratégia voltada para fora ou de fato para a melhoria de vida do morador?
Bruno Paes Manso - Acho que tinha uma tentativa de acertar, que ninguém faz uma política pública achando que vai enganar meramente as pessoas. Mas de fato, das 38 UPPs criadas na época, basicamente todas estavam em morros da zona sul e da zona norte, inclusive na área do Maracaña onde estavam os equipamentos olímpicos. Não tinha UPP na Baixada Fluminense ou nas áreas de milícia, só uma no Batan [zona oeste]. Elas ficaram inicialmente nos cartões postais da cidade.
Muita gente já criticava isso, mas se tinha a ideia de que se expandiria em algum momento e iria conseguir abarcar outras áreas. Mas se mostrou insustentável, principalmente quando o estado entra em crise de receitas, o preço do petróleo cai, tem os escândalos ligando o Sérgio Cabral. Logo se prende o governador e a coisa rui completamente, a política pública se desestrutura de ponta a ponta.
Folha - Você fala no livro que depois da ocupação começam a surgir as novas vozes de dentro do Alemão, com as redes sociais. De que forma essas vozes mudaram o olhar da imprensa e da sociedade sobre a favela?
Bruno Paes Manso - Tem mudado muito. Essa molecada não é mais vista como era nos anos 1990, como a galera da favela que está se manifestando. Eles transcendem território, raça, gênero. Eles falam para toda a cidade, e isso é positivo. A própria Marielle, o funk, a cultura da favela é de vanguarda, é inovadora, é POP. Tem uma cena na sociedade civil desses lugares muito inteligente, muito criativa e contestadora.
Antes das redes sociais já tinham essas lideranças que foram fazendo esses caminhos, mas com a internet isso ganha uma dimensão gigante. Você permite ter uma redação no Complexo do Alemão, uma redação na Rocinha, o Edu Carvalho na Rocinha, você tem toda uma galera produzindo e apurando.
Folha - Recentemente o governador em exercício, Cláudio Castro, disse ao jornal O Globo que prepara um grande plano de segurança e que está estudando a política de ocupação de territórios. Continuamos fazendo as mesmas coisas?
Bruno Paes Manso - Eu vejo isso com muito ceticismo, porque ele foi vice de um dos piores governadores da história do Rio. Tem compromissos e ligações com toda a velha polícia, que tem todos os seus esquemas formados há mais de 40 anos, e está dialogando com a família Bolsonaro, que acima de tudo quer mudar o procurador-geral e inocentar o Flávio Bolsonaro das investigações. Então ele tem um compromisso com a família para conseguir se manter no cargo. E ele é frágil, é um governador que se você assoprar ele cai, e isso é ideal para as milícias. Uma figura frágil, inexpressiva, que ninguém conhece. O que ele pode fazer? Falar, jogar promessas e ver se cola.
Folha - Você vê alguma política de segurança pública sendo aplicada hoje no Rio?
Bruno Paes Manso - Não, não tem. Você tem muita gente ganhando dinheiro no crime, muitos milicianos. Depois de todo o escândalo que houve com a morte da Marielle, os principais suspeitos de envolvimento são ligados a grupos de matadores acusados de pagar a Divisão de Homicídios para não investigar escritórios do crime que agiam a mando de bicheiros, mais especificamente do Rogério de Andrade. Tudo isso foi um escândalo, como falo no livro.
E apesar de toda essa expectativa, de toda a crítica que a polícia sofria por não ter coibido os matadores de aluguel dos bicheiros, duas semanas atrás mataram o maior inimigo do Rogério de Andrade, que estava jurado de morte desde 1997, o Fernando Ignácio. Então a impressão que dá é: eu faço o que eu quero e ninguém vai fazer nada.
Folha - O governo tem falado muito em sufocar a parte financeira da milícia e do tráfico. Acha que isso tem sido feito efetivamente?
Bruno Paes Manso - O desafio das secretarias de polícia e do governo do Rio é fingir que está funcionando. Tem essa tentativa de ter um discurso, de dialogar, e aí vão lá e matam 17 pessoas como se isso fosse algum tipo de vontade para combater o crime, na véspera da eleição [em outubro, a Polícia Civil matou ao menos 17 suspeitos em 24 horas, em operações contra o Bonde do Ecko].
Uma coisa que sempre me deixou muito impressionado é essa capacidade da polícia de enganar a opinião pública com esses factóides. Isso é muito típico da polícia do Rio, dizer: olha, está vendo como nós não aceitamos as milícias? Mas são justamente os que não estão sendo incomodados e estão em silêncio que são os mais poderosos.
Folha - A tática aplicada contra o tráfico é a mesma aplicada contra as milícias?
Bruno Paes Manso - Não, são bem diferentes. No livro eu cito algumas pesquisas que fizeram levantamentos sobre as operações policiais, e foram quase em 70% em áreas do Comando Vermelho.
A grande vantagem de se morar num bairro controlado por milicianos, apesar de você ser extorquido, é que você não tem operação policial e tiroteios, a escola não fecha de manhã, seus filhos não morrem de bala perdida, porque as operações de guerra produzem um caos quase cotidiano nesses territórios.
Folha - A ocupação de 2010 contribuiu para o enfraquecimento do Comando Vermelho até hoje?
Bruno Paes Manso - Não, eu acho que houve um enfraquecimento imediato no ano seguinte, o CV teve que se reestruturar, mas depois se fortaleceu. Inclusive o chefe do Alemão que fugiu é hoje um dos principais atacadistas de drogas para o Rio de Janeiro, que é o Pezão. E o CV conseguiu se fortalecer, hoje está em vários estados do Brasil, o Marcinho VP continua tendo um papel importante de dentro da cadeia. O que acontece é que têm grupos mais fortes que são as milícias, e o apoio das instituições permite que eles sejam mais fortes. Só que se os dois entrarem em confronto vai ser uma tragédia, e eles entram pontualmente. Mas o CV ainda tem muito fuzil e é muito forte.
Folha - Um dos elogios à ocupação que ainda resiste é que ela teria mostrado que, se quiser, o Estado pode retomar os territórios. O que acha desse argumento?
Bruno Paes Manso - Eu acho que a polícia hoje não tem interesse [em ocupar], porque tem muita gente ganhando dinheiro com essa situação. A situação é um pouco mais difícil do que era, porque as instituições se fragilizaram muito, e o crime se fortaleceu. Então vai ter que ter um governador que aja com respaldo político e um apoio muito grande de uma base compromissada com reformas.
O Sérgio Cabral teve isso, ele foi um governador forte, até pelas ligações que ele tinha com o Lula, pelo dinheiro que ele tinha, pelo preço do petróleo. As pessoas viam que era melhor não bater de frente com o Estado, pois existia toda uma capacidade de articulação, até com as Forças Armadas.
É um pouco o que aconteceu em São Paulo: o crime começa a crescer nas brechas, ele não bate de frente com o Estado. Era isso que estava acontecendo quando o Sérgio Cabral ainda tinha essa força política. Agora com a ruptura, com as prisões sucessivas, com a crise fiscal do Rio, com essa sucessão de governadores impichados, o Estado ficou muito frágil. Primeiro você tem que construir o poder político do governo, eleger um governador com legitimidade, que seja visto como alguém com força. E força não significa violência, pelo contrário: quanto mais violência você usa, é porque menos poder você tem.
Folha - Você é um otimista ou pessimista? Consegue ver uma mudança a médio ou longo prazo para a segurança pública do Rio?
Bruno Paes Manso - O Mário Sérgio Conti, crítico da Folha, escreveu que meu livro é candidato a livro mais triste do ano. Ele relata muito o buraco do Rio, a profundeza do drama que a cidade vive. Mas eu acho que independentemente de ser otimista ou não, você tem que ser realista num primeiro momento, assumir o tamanho do buraco e tomar decisões em cima disso. Não adianta fingir que está mais ou menos tudo bem. Você tem que enfrentar, não tem outra saída. É difícil, mas é necessário. Otimista ou não, eu acho que tem uma obrigação moral do Brasil, do Estado, da sociedade, dos políticos, de lidar com isso.
Folha - Qual é a lição que a ocupação do Alemão deixa hoje?
Bruno Paes Manso - A força do Estado não depende necessariamente da violência. Não é só o Alemão, mas as próprias UPPs. Um político com força e legitimidade não precisa de violência para avançar e alcançar seus objetivos. Resgatar o poder político da instituição executiva do Rio de Janeiro e das instituições de Justiça é o aspecto mais urgente que o Rio vive. Usar a violência muitas vezes é um ato desesperado de quem não tem mais poder político para ser obedecido.
Você vê a quantidade de mortes que houve na quarentena. Foi necessário se ter uma liminar do STF para impedir as operações, e daí a violência diminuiu. O que está acontecendo hoje é selva. São vários grupos tomando iniciativas próprias sem nenhum tipo de racionalidade ou estratégia, matando loucamente, a polícia do Rio alcançando recordes sucessivos, sem resolver nada e com muito policial ganhando dinheiro com isso. Porque não tem governo, não tem comando, não tem governador, não tem um chefe estrategista que represente o Estado de direito.
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