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Em 2017, mais de 60 pessoas foram atropeladas e mortas por trens no Rio


Gabriele Roza - Agência Pública - Rafaela Albergaria ainda conta com indignação o episódio da morte de sua prima Joana Bonifácio, de apenas 19 anos. Era uma segunda-feira, 24 de abril de 2017, em um trajeto que ela costumava fazer havia dois anos, da estação de trem de Coelho da Rocha, no município de São João de Meriti, até a universidade em Campo Grande, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, onde cursava biologia. Aproximadamente uma hora e quarenta de viagem, que ela passava dentro dos trens dos ramais de Belford Roxo e de Santa Cruz. Rafaela conta que nesse dia, drasticamente, ao tentar entrar no trem, a prima teve uma das pernas presas na porta do vagão. Desequilibrou-se e caiu no vão entre o trem e a plataforma; morreu atropelada.

“Ela foi arrastada por mais de 20 metros, ficou estirada no trilho do trem por mais de oito horas. Aconteceu às 10h30 e só tiraram o corpo dela às 18h”, lembra a prima. 

Joana era a segunda da família a chegar à universidade; Rafaela foi a primeira. “Eu fiquei com muito orgulho da minha prima ter entrado na universidade, ela queria muito isso. Ela foi morta tentando chegar na universidade”, lamenta.

Em um ano, a causa do acidente foi mudando, segundo o que diziam as fontes oficiais. Na primeira nota em resposta ao acidente, a SuperVia, concessionária que opera os trens da região metropolitana do Rio, afirmou que Joana havia cometido suicídio. Rafaela estranhou. Mais tarde descobriria que esse era um argumento comum em casos semelhantes. “Depois [a SuperVia] falou que as pessoas devem respeitar a sinalização, que ela não respeitou, que ela não deveria entrar com a composição em movimento”. Segundo o deputado Gilberto Palmares (PT), que acompanha os casos, hoje a Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes do Estado do Rio (Agetransp) reconhece como possíveis causas da morte “comportamento inadequado da vítima”, “falha da manutenção do vão entre o trem e a plataforma” e “procedimento operacional deficiente”.

Segundo a SuperVia, a concessionária mantém a mesma informação desde a primeira nota oficial, enviada no dia da morte de Joana Bonifácio, de que uma passageira caiu no vão entre o trem e a plataforma, após desrespeitar o aviso sonoro e tentar embarcar em uma composição em movimento na estação Coelho da Rocha. 

A prima de Joana acredita que o tamanho do vão entre o trem e a plataforma – “em que cabe uma pessoa”, diz ela, contribuiu para a morte. “Ela poderia cair na plataforma e alguém poderia puxar ela, mas, como o vão é gigante, foi arrastada e caiu no vão, e não teve o que ninguém fazer.” Para ela, existe uma série de situações que determinam acidentes nos trens. “Se você conversar com qualquer pessoa que pega o trem, não tem o aviso sonoro, não tem o painel que mostra qual é a próxima estação, não tem nada disso.”

Acusadas pela própria morte

Depois da morte da prima, Rafaela foi procurar saber se havia outros casos semelhantes nos trens da SuperVia. Suspeitava que outras vítimas do descaso tinham sido declaradas culpadas pela própria morte. “Começamos a levantar os dados para poder contrapor essa responsabilização sobre ela e para tentar fazer alguma coisa. Vimos que não tinha mapeamento de nada.” Tentou obter os dados com a Agetransp, mas o órgão alegou não poder divulgá-los porque a maioria das mortes eram suicídio, justificando haver “uma lei que diz que não se pode fazer apologia [ao suicídio] e não pode noticiar”, lembra. No seu périplo, Rafaela teve auxílio da Casa Fluminense, uma organização civil que defende políticas e ações públicas para melhorar a região metropolitana. Conseguiram, afinal, via Lei de Acesso à Informação, que o Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão ligado ao governo do Estado,  enviasse os dados. Apenas observando os casos de atropelamento ferroviário que ocorreram em municípios cortados pelos trens da SuperVia, percebe-se que em 2017, ano em que Joana morreu, foram 66 casos, 30 a mais do que em 2016 e 41 a mais do que em 2015.

No total, de 2008 a 2017, foram 285 casos de homicídio culposo provocado por atropelamento ferroviário e 138 casos de lesão corporal culposa provocada por atropelamento ferroviário nos municípios que são cortados por trens da SuperVia. No mesmo período, foram registrados 32 casos de suicídio em linhas de trens da região metropolitana pelo ISP.

 SuperVia: trens ruins, insuficientes e perigosos

A SuperVia, controlada desde 2011 pela Odebrecht TransPort, opera os serviços de trens urbanos em 12 municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro, aproximadamente 270 km de malha ferroviária dividida em cinco ramais e 102 estações. Todos os ramais partem da Central do Brasil, no centro da capital, três deles têm outro município como destino final e os demais terminam na zona oeste do Rio de Janeiro. Em média, são 600 mil passageiros por dia.

“Belford Roxo é o pior ramal que tem” é a frase que a reportagem da Pública mais ouviu durante a viagem da Central até a estação de Belford Roxo. As histórias de superlotação dos trens, atrasos nos horários, além de problemas na segurança, são muitas. O ramal, que termina no município de mesmo nome, passa por 12 bairros do Rio de Janeiro. Alguns deles, como Jacarezinho, Costa Barros, Barros Filho, apresentam os piores IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano) do Rio. O trem passa também em três bairros do município de São João de Meriti, cidade apelidada de “formigueiro das Américas” por ser o município com maior densidade populacional do país, 13.024 habitantes por km². Segundo o Mapa da Desigualdade, da Casa Fluminense, Belford Roxo, Japeri, Nova Iguaçu e Queimados apresentam os piores indicadores de trânsito da região metropolitana do Rio. Quase a metade dos moradores de Belford Roxo, 43%, leva mais de uma hora de casa até o local de trabalho. Em média, gastam 20 dias do ano dentro do transporte público.

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 “Muitas vezes na parte da manhã o ramal fica sem circulação e aí a SuperVia alega tanto a questão da segurança pública como roubo de fios. Então é comum a parte do ramal estar fechada no momento de maior circulação”, explica Douglas Almeida, morador de Coelho da Rocha.

Natália Rosa, 27 anos, trabalha próximo à estação de trem de São Cristóvão, mas evita voltar para casa de trem à noite. Prefere pegar alguns ônibus para voltar do trabalho – e pagar duas vezes mais. “Acho que deveria ter fiscalização porque esse ramal está largado, você não vê nenhuma segurança aqui.” Segundo ela, com frequência algum passageiro fica preso na porta. “Na semana passada, no ramal Belford Roxo, mais ou menos ali no Jacarezinho, um rapaz veio correndo pra entrar no trem e aí ele jogou o corpo, só que só a mão dele ficou pro lado de dentro, o corpo dele ficou todo pro lado de fora.”  Ela conta que, mesmo com a mão impedindo que a porta fechasse por completo, o trem partiu com velocidade. Segundo ela, alguns homens conseguiram abrir a porta e puxar o homem para dentro do trem. “Todo mundo ficou muito apavorado, o trem estava em movimento já”, lembra.

Uma situação parecida aconteceu com Thiago Alves, de 32 anos, na estação terminal de Deodoro em 2015. “Na hora que eu fui entrar dentro do trem, entrou uma multidão junto comigo e os seguranças da estação estavam tentando fechar a porta de qualquer jeito e empurrando as pessoas pra entrar, tipo socando a sardinha pra dentro da lata”, diz ele. Mesmo com porta não totalmente fechada, o trem deu partida com o pé e a mochila do rapaz do lado de fora. “Os homens da SuperVia viram que minha mochila e meu pé estava do lado de fora porque eles que fecharam a porta.” Com o andar do trem, seu pé começou a arrastar com velocidade no concreto da estação, rasgando o tênis e machucando-o. Ele chegou a gritar que o pé estava preso, e outros usuários conseguiram espaço para abrir um pouco a porta antes de chegar à próxima estação.

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 Quem coleciona muitas histórias de terror nos trens é Izabela Batista, vendedora ambulante há mais de cinco anos nos trens. “Uma senhora morreu lá em Jacaré [Jacarezinho] em 2016, tava ela e a neta andando na cancela [passagem para pedestres] e o expresso andando muito rápido, porque não para no Jacaré. E ele andando muito rápido, matou a senhora e a neta que estavam atravessando a cancela. Por ele ser expresso, ele deveria andar um pouco devagar, mas ele foi a todo vapor e arrastou elas”, lembra. Sobre o ramal Belford Roxo, ela diz que os trens atrasam sempre, “não pode ter uma chuva que não passa”. ‘‘Só botam trem velho e quente no ramal Belford Roxo. Tem um aí que é o pavor, nenhum camelô entra nele de tão quente que é, sem conforto nenhum pros passageiros”, reclama.

Subnotificação das mortes

Para Rafaela, que depois da morte da prima se tornou uma ativista pela melhoria do transporte ferroviário, a situação em alguns ramais, além de irregular, é desumana. “Se os órgãos fiscalizadores de fato fiscalizassem, eles iam se atentar pra fazer as obras, mas na verdade todos olham pra essas vidas como se não fossem importantes.” Ela garante, ainda, que há mais mortes do que a empresa registra. Com outros moradores da Baixada, ela organizou uma rede para notificar o número de mortes por atropelamento. “Só em outubro do ano passado ficamos sabendo de três mortes que não saíram em lugar nenhum, o que provavelmente não saiu na estatística”, diz.

Outro que está investigando as mortes nos trens é o deputado Gilberto Palmares (PT). Ele prepara um documento de análise sobre os casos nos últimos seis anos para apresentar um relatório à Comissão Parlamentar de Inquérito dos Transportes, que funciona na Assembleia Legislativa do estado desde fevereiro para investigar irregularidades na gestão pública do setor de transportes.

“Achamos que o número de morte é maior, mas, para ter um cunho oficial, estamos trabalhando em cima de uma relação oficial da agência reguladora. Pegamos os 29 acidentes fatais que a própria Agetransp reconhece, de 2011 a 2017.” Entre eles, 23 foram em estações de trem da SuperVia, uma média de quase quatro acidentes fatais por ano. Em 2017, segundo os dados da Agetransp, foram nove mortes nos trens da SuperVia. 

 Questionada sobre a grande diferença dos dados disponibilizados pelo ISP, a Agetransp informou que a ela não cabe o poder de polícia nem o inquérito policial. “A quantidade de ocorrências com óbito levantada por esta Agetransp está relacionada com as ocorrências em que existem indícios de contribuição ativa dos meios, sistemas e equipamentos da Concessionária”, informou.

O deputado afirma: “Os acidentes que chegam até um nível de apuração, na maioria dos casos, dizem que o culpado são as vítimas, ou porque entrou no trem de forma indevida, ou forçou a abertura, ou se suicidou… Estamos focando em uma série de situações que não são bem assim.”

Palmares está dando ênfase a dois casos, um que ocorreu no metrô e outro, o de Joana Bonifácio. O deputado diz que vai dizer à CPI que o espaço entre o vão e a plataforma potencializou a morte da garota. “Eles falavam no início apenas que a causa foi comportamento inadequado da vítima, continuam falando, mas depois, quando começamos a medir o tamanho do vão e cobrar, eles acrescentaram falha da manutenção entre o trem e plataforma. Então eles próprios começaram a reconhecer.”

Palmares aponta também para a demora do resultado de apuração dos casos. Em um deles, ocorrido em julho de 2015 entre a estação de Madureira e a de Oswaldo Cruz, a “causa provável” descrita no relatório da Agetransp foi “acesso indevido da vítima”. Porém, até hoje não há uma conclusão do Conselho Diretor da Agetransp sobre esse caso. “Se você apurar, e a agência reguladora é o [recurso] final, os conselheiros têm que ir em cima do que foi apurado e opinar, se foi culpa da vítima, se não foi. Como é que uma coisa de 2015 não tem um resultado até hoje?”, questiona. “Estamos cobrando da Polícia Civil e da Agetransp que nos informem quando há acidentes fatais e nos mostre a apuração desses casos.”

Em 2016, foram dois acidentes registrados pela Agetransp – um no dia 25 de dezembro na estação de Marechal Hermes e outro em 9 de setembro na estação de Honório Gurgel.

Danilo Firmino, do Coletivo Fala Subúrbio, de Honório Gurgel, que acompanhou o segundo caso, diz que a SuperVia chegou a divulgar uma nota tentando criminalizar a vítima, relatando que ele tentou entrar no trem andando. Mas não foi bem assim, diz ele: “Tinha uma porta aberta, ele entrou, mas o pé dele ficou preso [do lado de dentro do trem e corpo do lado de fora] e ele caiu entre o vão do trem e a plataforma. Chegou a ser socorrido, mas não resistiu”. Firmino lembra que chegaram a chamar a Polícia Civil e abrir um registro de ocorrência, mas não sabe a conclusão da investigação. “A verdade é que as estações estão abandonadas. Como demora muito, as pessoas acabam saindo correndo pra pegar o trem.”

Entre o trem e a plataforma, um enorme buraco

No dia 14 de maio de 2018, na diligência na estação Coelho da Rocha, o deputado petista fez uma inspeção no ramal de Belford Roxo com agentes da SuperVia. “Eles limparam a estação e pintaram para a nossa visita. Se você for lá hoje, você já não mede o vão tão grande, eles fizeram uma intervenção no processo e acertaram. Estão como se tivessem tapando o vestígio do crime.”

No dia da visita ele mediu o espaço entre o trem e a plataforma nas estações visitadas. Em algumas, o espaço chegava a 30 centímetros. As normas técnicas determinam que o vão máximo deve ser de 10 centímetros.

Além de o tamanho entre o vão do trem à plataforma ser grande, possibilitando a queda de uma pessoa, segundo o deputado, nos trens da SuperVia, o maquinista não consegue enxergar a porta para saber se alguém ficou preso. “É evidente que, se é comum no trem as pessoas descerem correndo, entrarem com a porta entreaberta, o trem não deveria sair. Não deveria sair de porta aberta. O maquinista, que é o cara fundamental da história, tinha que ter a visão de tudo.”

No caso de Joana, a Agetransp alega que o funcionário da estação avisou que o trem estava fechando e Joana não desistiu de entrar. “Mas não falam que o apito [sinalização que o trem está fechando] não é ouvido pelo maquinista. A SuperVia tinha que ter um dispositivo que permitisse ao maquinista ver essas situações. Não à toa, o número de acidente no trem é muito maior do que no metrô.”

“Transporte no Rio é caro, é ruim, é insuficiente e ainda é perigoso”, conclui o deputado. “A própria documentação deles mostra que eles não cumprem as normas fundamentais de segurança, e um dos elementos de acidentes é a falta de investimento nas estações e nas plataformas.”

Em respostas à Pública, a SuperVia informou que o desnível entre os trens e as plataformas “está sendo solucionado gradativamente nas estações”, com o trabalho de padronização das plataformas de embarque e desembarque.

Acrescentou também: “Vale reforçar que todos os trens da SuperVia possuem sistema interno de áudio para avisos e comunicação com os passageiros. A concessionária realiza inspeção diária nos trens e possui planos de manutenção preventiva e corretiva que são seguidos com rigor para evitar tais falhas. Os agentes de controle da concessionária são distribuídos em equipes por todas as estações e ramais.”

Além disso, a operação do ramal Belford Roxo ‘‘passou por melhorias, com a criação das viagens expressas, mais rápidas porque param em menos estações, além da padronização dos intervalos e a ampliação da oferta de viagens nos fins de semana. No entanto, por vezes, fatores externos, como ações de vandalismo e insegurança pública, podem causar interrupções ou atrasos na operação dos trens”, diz a SuperVia, acrescentando que cumpre todas as metas do contrato de concessão e que renovou a frota.

A Agetransp informou que “realiza inspeções periódicas que buscam identificar possíveis deficiências técnicas e/ou descumprimentos às normas legais que venham a prejudicar a operação comercial e o serviço dedicado aos usuários”. Segundo a nota, “diariamente são deslocados agentes para os mais diversos locais da malha ferroviária, com o objetivo de realizar inspeções rotineiras ou específicas nos meios, sistemas ou equipamentos da Concessionária. Tal como realizamos acompanhamento mensal das manutenções preventivas e corretivas desses itens visando o controle de qualidade e a erradicação de possíveis falhas recorrentes”. Reportagem completa de Gabriele Roza em Agência Pública

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